O DIA EM QUE MORRI





Hoje eu sou um espírito andando por aí. Como uma sombra, tenho grandes virações e experimento ver o mundo de uma maneira que nem mesmo quando eu ainda vivia em meu corpo humano jamais experimentei ou sonhei. No entanto, naquela noite em que morri eu estava calmo.
Recordo-me bem. Eu estava sentado num café, bebericando café e saboreando iguarias quando aquele homem chegou. Ele trajava uma roupa velha, muito gasta e tinha um odor amargo. Olhou o salão furtivamente, sem se fixar, mas reparou em todos os movimentos. Eu lia, mas vi quando ele me fixou, me olhando por sobre o ombro direito. Eu tentei desviar meu olhar, mas o homem me percebeu. Ele veio até mim e se sentou na cadeira vazia.
A barba hirta e suja, fedia. As unhas sujas começavam dedos grandes com nódulos salientes e cortes indistintos que marcavam a vida sem esmero daquele homem. A jaqueta vermelha rasgada e o velho jeans desbotado complementavam o visual dantesco sentado ali, bem próximo, me enojando. E eu, cristão, fingia bem ao incômodo que o asco daquela presença me infligia.
“Posso beber um pouco do seu café?”, falou ele com certa impaciência.
“Pode, pode”, eu disse sem me dar conta de que eu havia sobejado o café e deveria ter pedido um café novo para o meu “conviva”. O homem não se incomodou. Sorveu o café naturalmente, sem nem ao menos se importar com o gosto ou com a quentura do líquido, como se o interior daquele homem fosse tão áspero quanto sua pele.
“Me dá essa esfiha”, disse ele com a naturalidade de quem dá uma ordem. Eu o olhei e fixei, e ele me olhou em revide. E eu, sem nada dizer, empurrei a esfiha para ele. Ele estendeu a mão grosseira, segurou o salgado e, em duas ou três mordidas, consumiu-o com a mesma voracidade daquele homem do poema de Bandeira. Se ele pedisse, eu teria lhe dado mais algumas esfihas. E eu olhava atentamente.
“Você é bom”, ele disse. “Está com nojo de mim, mas é bom”, ele asseverou. Isso me acalmou e eu fui, aos poucos, recobrando a sensibilidade, me desarmando. Então, o homem apanhou o revólver.
“Pessoas boas sofrem neste mundo”, disse o homem, me mostrando a arma, que também não brilhava.
“Está carregada, esta arma”, disse ele, percebendo minha curiosidade. “Pessoas boas merecem o céu, não este mundo doente”, garantiu ele. “Você está preparado para partir?”, ele quis saber.
Eu o olhei com ansiedade. Não sabia o que dizer, mas tentei manter a minha calma, e disse, mas para mim que para ele: “há alguém que está?”.
“A gente não devia se apegar tanto, sabe? Nós somos amigos e vamos partir juntos”, disse ele.
“Você vai me matar?”, eu quis saber, olhando ainda para aqueles olhos quase ocos.
“Vamos nos libertar”, ele afirmou. “Esse mundo não merece nossa existência”, afirmou ele categoricamente.
Eu revi minhas realizações e concluí que meu nome não estava associado a nada grande, a nenhuma realização importante. E isso me angustiou mais do que ver aquela arma sem brilho empunhada por aquela mão suja, mas com firmeza, e ponderei que aquele homem tinha mais firmeza em suas vontades que eu. “Posso fazer uma ligação?”, eu perguntei, mostrando a ele o celular.
“Receio que não vão dar ouvidos a um morto”, ele disse, levantando o revólver, encostando-o no meu peito e atirando. Eu caí com o tiro e não vi nem ouvi mais nada. Instantes depois havia uma multidão curiosa em volta de dois corpos caídos, um com um furo no peito e outro com um furo na cabeça. Na mesa, o celular aceso lembrava o último pensamento que tive no instante final de minha vida, e a última voz que eu quis ouvir dizendo alô, sem resposta, e era o seu o número que eu havia digitado no dia em que morri.

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